sexta-feira, 30 de setembro de 2016

A cidade dos piratas, por Serge Daney












                                                   


Há filmes que não estamos seguros de não ter sonhado. Talvez sejam estes os mais belos. Tal como esta nova aventura do capitão Ruiz ao reino de nossas crenças.

Tome uma criança e assegure-se de que sonha. Acorde-o e conte-lhe uma história. Embale-o com sua mais bela voz off. Faça-a insidiosa, não esqueça o fundo sonoro. É preciso que, voltando a adormecer, a  criança acabe de sonhar a história que você lhe soprou. É preciso que ao despertar ela sinta que foi a história que a escolheu, e não o inverso. Uma história imortal, intitulava-se um dos últimos filmes de Welles; mas toda história é imortal, dizem aqueles todos de Ruiz. Daí tantas delícias, e ainda o excesso de delícias, e depois  o terror. 
Mas se você não dispõe nem da criança adormecida, nem do tempo suspenso, nem da voz que embala, nem de um talento para a improvisação ( ou seja: a arte de ter sempre a última palavra), não insista e renuncie a imitar Raul Ruiz. Apenas ele parece ter guardado o segredo e o gosto dessas coisas. Desde o silêncio de Welles e a partida de Buñuel para a Via láctea, fala-se muito do retorno do cinema à ficção. Mas muito pouco do retorno da ficção ( como se diria do retorno do recalcado ou o retorno de Frankenstein). Os filmes de Ruiz são contos, e  possuem um caráter iniciático. Frisados, trucados, escorregadios ou maléficos, tem um charme louco. Mesmo que tenha sido preciso esperar dez anos ( da queda de Allende, em 1973, que distancia Ruiz de seu país natal, ao último ano, com Três coroas do marinheiro) para que um público de súbito menos insignificante tombe sob este charme e marche sob esta loucura.

E isto apesar da acusação feita a Ruiz de hermetismo e de intelectualismo , que prova apenas que, quando são confrontados a um verdadeiro barroco latino-americano, os franceses tem dificuldade em admitir que sua própria tradição de filmes-labirintos, de jogos de puzzle ou de ganso ( oie) à la Robbe-Grillet e Resnais, não possui peso. Isto dito ( e bem dito, não o faremos mais, está prometido: a próxima vez vamos considerar Ruiz como já conhecido, senão reconhecido), A cidade dos piratas , que é um pouco a sequência de Três coroas e que evoca este filme em parte de sucesso que é O território ( três  filmes rodados em Portugal), tem sua tonalidade própria, seus gimmicks íntimos, seus sucessos fulgurantes e suas falhas secretas. Em suma: um filme soberbo, onírico, quase irrecontável e totalmente “pancada”.
Por onde começar? Retomemos a metáfora da pessoa que dorme. Estamos no Sul, face ao oceano, submetidos a todos os paradoxos. Em seu quarto, Isidore está  adormecida. Sim, adormecida, pois é uma mulher. Sua mãe, que com dificuldade parece mais velha que ela, acorda-a dizendo: “Dormes, Isidore?” “Conta-me uma história”, responde a pequena voz de criança de Isidore. Sobre uma mesa do lado, algumas notas de banco deixadas pelo pai: ele abusou de Isidore, e pagou por isso. Esta cena não nos dá evidentemente nenhuma ideia dos eventos inumeráveis que povoam esta Cidade dos piratas , mas em certo sentido todo Ruiz se acha aqui. Como Buñuel, ele se diverte com as permutações lógicas mais simples. Perversão do nome e do gênero, das idades e dos amores, do antes e do depois. Incesto, elo social tornado um jogo de palavras ou um “jogo de sete famílias”. Aliás, esta “cidade” não é nada senão uma ilha, sendo que nela só há um habitante que desempenha todos os papéis. No que se refere ao conforto da identificação ( quem é quem?), Ruiz é o menos seguro dos guias. Ele não crê na identidade, ele só crê nas cartas ( cartes). Forçadas, de preferência. 1

Isadore beija um carabineiro, e a forma encarnada do beijo se mostra ser aquela da famosa ilha dos piratas. Um homem atira na própria cabeça, e um novelo de linha, ejetado com o jato de sangue, desenha a forma desta ilha.  No início, tudo não passa de enigma ( rebus). No fim, só haverá escória ( lixo: rebut). Entretempo, a  bela Isidore conhece um menininho , mas este anjinho do mal é um grande criminoso. Ela se torna sua noiva e cúmplice; ela o segue pela ilha. Ela voltará, sim, mas em que estado! Sentimos que a palavrinha que se sente pouco à vontade no mundo de Ruiz é o verbo “ser”. Vemos que não ganhamos nada em querer contar A cidade dos piratas. Vemos bem que não vemos nada. 
E, no entanto...quanto mais nos desencorajamos de identificar aquele ( aqueles) que vemos na tela ( ao ponto de no final gritarmos mentalmente “Puxa”, e roçarmos o tédio), mais Ruiz se diverte coma  aparência das coisas, deste peso material, anedótico, que elas guardam apesar de tudo.
Dois cadáveres putrefatos ( e ainda mais orgulhosos) tomam um chá durassien, um bocejo é filmado sob o ponto de vista da glote, trechos de detalhes devoram a imagem sem razão, uma caveira se torna uma bola de rugby: todo um panorama da pintura espanhola do século XVII- aquele das Vaidades e do Valdes Leal dos Hierógligos de nossos fins últimos, são prestes a se animar diante de nós. Sob a irrupção dos vermes.
Assim sendo, quanto mais renunciamos a saber em que filme viemos parar ( ao ponto que, perto do meio, acovardados e cansados, já achamos que agora já é demais), mais Ruiz se excela em evocar , com uma constante felicidade, o fantasma da série B americana, de Cocteau ou da série Hammer inglesa. Há do John Mohune de Moonfleet de Lang no meninote de A cidade dos piratas, como há do Tourneur ( aquele da Morta viva) no tom alucinado de certas vozes. Como se, para se escusar do abracadabra de seu próprio conto, Ruiz o travestisse com a  lembrança dos contos onde nós, crianças, tivemos sempre alguma dificuldade para estarmos à vontade. 

Quanto mais nos convencemos de que a linguagem ( também ela) foi pega em uma armadilha, mais Ruiz consegue fazer seus atores falarem com um tom muito doce, e com este nada de amuamento desolado na voz que rende perturbadoras as frases mais simples. Há poucos cineastas, operando em “francês”, que melhor captaram a música do “era uma vez” do francês, o la musical que abre a porta de todos os contos. Há poucos músicos que, melhor que Arriagada ( cúmplice regular de Ruiz), saibam urdir partições dignas de um Ravel hollywoodiano e irônico. Enfim, quanto mais aceitamos seguir Ruiz em sua loucura de autor, mais nos é preciso rendermo-nos à evidência: cada vez ele é mais seguro na escolha de seus  atores. Em Cidade dos piratas, Anne Alvaro ( Isidore) e Mevil Poupaud ( o meninote) são particularmente bons.
Tudo isto, dirão vocês, possui um nome. Sim: sedução. Mas é a forma que é sedutora. Resta o fundo. Ruiz não é um esteta oco. Há um fundo em seus contos, e eu o creio terrível. Um fundo de imundices e de promiscuidade que nenhuma poesia pode calar de todo. Os cineastas- dizia eu no começo ( para provocar)- quase todos perderam o sentido do conto. Ainda mais, o único que o conservou intacto ( Ruiz) fez dele a sua loucura pessoal. O espectador “muito cartesiano” será menos desamparado diante de um filme como Cidade dos piratas se ele se fizer o favor de ver Três coroas do marinheiro ( que ainda passa em uma sala em Paris). Neste filme, Ruiz expunha sob que condições uma história poderia ser imortal. Era-lhe preciso carne fresca. A carne daquele que vai contar como ele acreditou que ela só aconteceria consigo. A daquele a quem a história é contada e que pensa ( errado) que ela não vai lhe acontecer. Tornada imortal, uma história não cessa de voltar. Em A cidade dos piratas, uma primeira vez como filme de aventuras; uma segunda vez como teatro cocteaunesco, uma terceira vez como exposição teológica, uma quarta em diálogo de mortos.

Viver é sonhar uma história; morrer é contá-la. Resta a eternidade para apodrecer.

25 fevereiro, 1984, Cine diário, Volume II

Tradução: Luiz Soares Júnior



                                                                      Nota:




       1 Diz-se de uma ação no jogo de cartas onde se escolhe uma carta particular ( conhecida de antemão pelo mágico), pretendendo no entanto que a escolha é livre e aleatória. 


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